quinta-feira, 10 de setembro de 2020

05 SOBRE AS ATIVIDADES LÚDICAS E SUA FUNÇÃO NO DESENVOLVIMENTO DO SER HUMANO: FREUD E PIAGET

 

 

OBSERVAÇÃO - Ao caminhar pela leitura do presente texto, o leitor deverá ter presente que ele é parte de artigo publicado pela primeira vez em Educação e Ludicidade (Ensaios 02) --- Lucicidade: o que é isso?, sob a organização da Profa. Bernadete Porto --- GEPEL/FACED/UFBA, 2002, páginas 22 a 60, sendo que o texto que se segue está entre as páginas 33 e 45, com uma ou outra atualização.

 

 

 

No que se segue, estarei apresentando duas possibilidades de usos das atividades lúdicas na vida do ser humano, a partir de duas abordagens diferentes: psicanalítica e piagetiana. Poderiam ser outras --- tais como as de Wallon, de Vigotsky e outros ---, porém, escolhi estas duas, que, a meu ver, são importantes para dar corpo à compreensão do fenômeno da ludicidade.

A compreensão sobre aquilo que denominamos de “objetos lúdicos” e “atividades lúdicas”, que são os “brincares” e os “brinquedos” --- especialmente no que se refere à sua constituição socio-histórica e sobre seus papéis na vida humana --- tem origem em várias áreas do conhecimento. Assim, existe uma história do brinquedo, uma sociologia do brinquedo, um estudo folclórico do brinquedo, um estudo psicológico do brinquedo...; o mesmo ocorrendo sobre as denominadas “atividades lúdicas”.

Esses estudos nos ajudaram, ajudam-nos e nos ajudarão a compreender o papel e o uso das “atividades lúdicas” na vida humana, tendo presente, neste texto, que estamos em busca de compreender como, possivelmente, pode dar-se e operar internamente no sujeito a vivência das experiências internas de cada um, por meio da vivencia dessas experiências.

No decurso deste texto, tomaremos duas abordagens teóricas que nos auxiliarão a compreender o papel dessas referidas atividades na vida humana e em seu desenvolvimento; as abordagens de  Sigmund Freud e de Jéan Piaget.

 

 

1. As heranças freudianas

 

Freud compreendeu que o brinquedo é o caminho real para o inconsciente da criança, assim como o sonho é o caminho real para o inconsciente do adulto. Brinquedo, aqui, deve ser entendido em um largo espectro de compreensão, que inclui desde os brinquedos como objetos materiais, assim como os brincares, tanto os que são transmitidos pela herança sociocultural como aqueles que a criança inventa e vivencia espontaneamente a cada momento.

A experiência do brincar --- como outras experiências --- tem seu lado interno, que se expressa no externo sob variadas condutas psicológicas, que podem ser “lidas” e interpretadas por um profissional treinado para tanto. A meta de Freud, em seus estudos e publicações, como sabemos, foi desvendar e compreender as operações do inconsciente através de suas manifestações externas.

A partir daí, o próprio Freud[1]  assim como seus discípulos próximos e distantes, tais como Ana Freud (filha do próprio Freud), Melanie Klein[2]  Bruno Bettelheim[3], D.W. Winnicott[4], Arminda Aberastury[5], André Lapierre[6] e tantos outros produziram diversas compreensões psicanalíticas, assim estruturam possibilidades de usos dos brincares e dos brinquedos nos procedimentos psicanalíticos em crianças, adolescentes e adultos.

A Psicanálise, em sua atuação psicoterapêutica, aposta na restauração do passado e na construção do presente e do futuro. Freud afirmou que temos em nós duas forças fundamentais: as forças regressivas, que nos atém fixados no passado e as forças progressivas, que nos mantém voltados para o futuro.

As forças regressivas são aquelas que tem como seu epicentro as nossas fixações neuróticas ou traumáticas do passado, que nos impedem ou dificultam o nosso viver fluído no presente, como também nossas aberturas para o futuro. Elas se manifestam através de nossas respostas emocionais automáticas no dia a dia, dificultando-nos estar bem conosco mesmos (intrapessoalmente) e em nossos relacionamentos (interpessoalmente). As forças progressivas, por outro lado, são aquelas que nos chamam para o futuro, para as nossas possibilidades de organização pessoal e de ser[7].

No caso do presente capítulo, interessa-nos imediatamente, a questão dos brinquedos, como caminho real para o inconsciente da criança. Nesse contexto, a prática de brincar das crianças, de um lado, revela como elas estão, a partir de suas histórias pessoais, assim como revela o que sentem sobre o seu presente cotidiano, seus medos, seus não-entendimentos do que está ocorrendo, o que está incomodando...; porém, de outro lado, essa prática revela, também, a construção do futuro.

As brincadeiras infantis constroem os modos de ser[8]. As brincadeiras são os meios pelos quais as crianças, de um lado, estão tentando compreender como os adultos agem e o que fazem, e, de outro, experimentam as possibilidades de sua própria vida, o que quer dizer que, através das brincadeiras, estão construindo e fortalecendo o seu modo de ser, a sua identidade[9].

Neste contexto, por exemplo, ao brincar de “pai e mãe”, as crianças, colocando-se nesses papéis, estão tentando saber o que é isso de “ser pai e ser mãe”; ou, outro exemplo, uma criança que passou por uma experiência de hospitalização, possivelmente, por um certo período, após sair do hospital, praticará brinquedos e brincadeiras que tenham como conteúdo algum flash de sua experiência passada recente. Possivelmente, brincará de médico, de enfermeira, de hospital, de ambulância e tantas outras possibilidades, que poderão estar auxiliando a sua compreensão do que ocorreu consigo. O mesmo ocorrerá com seus desenhos, com suas falas, com as estórias que inventa...

Por outra via, se for anunciada a uma criança que, em breve, ela será hospitalizada para uma intervenção qualquer, é bastante provável que inicie a usar brinquedos e brincadeiras relativos à saúde e àquilo que vai ocorrer em sua vida (que são os procedimentos de hospitalização), na tentativa de compreender o que lhe fora anunciado. Todavia, essas manifestações do inconsciente nas brincadeiras poderão também estar, e certamente estarão vinculadas a experiências mais antigas, em termos de história de vida pregressa.

 David Grove, um pesquisador neozelandês, que viveu nos Estados Unidos, criou uma metodologia específica para trabalhar com traumas através das metáforas, afirmando que as metáforas são expressões de traumas que estão fixados em nosso inconsciente. Quando, por exemplo, digo --- “eu tenho um nó na garganta”, ou “carrego o mundo nas costas”, ou coisas semelhantes, que de fato, não tem uma realidade física que sustente essas afirmações ---, eu estou, segundo esse pesquisador, expressando experiências traumáticas que estão guardadas no inconsciente.

Nesse contexto, pessoalmente, acredito que as brincadeiras infantis são metáforas que expressam aquilo que vai pelo seu interior; elas falam de sua realidade interior através do caminho metafórico das brincadeiras. Nós adultos, necessitamos aprender a compreendê-las em sua linguagem metafórica.

Se prestarmos atenção em nossos filhos e filhas, ou em nossos netos e netas, ou em nossos estudantes na escola, ou crianças em geral, observaremos que seus atos, sempre, estarão comunicando alguma coisa. Para entender essa comunicação, importa estar atento para o que elas querem dizer. David Boadella, criador da Biossíntese, diz que “como ponto de partida, é necessário reconhecer que é impossível um indivíduo não se comunicar”[10].

Por vezes, será bastante fácil descobrir o significado dessa comunicação, por outras, será exigido mais atenção e esforço de nossa parte para proceder essa compreensão. E, mais que isso, esforço e disponibilidade para aceitar a comunicação que está vindo através de uma brincadeira, pois que nem sempre estamos preparados e dispostos para acolher o que está ocorrendo.

Por vezes, as brincadeiras de nossas crianças nos desagradam, mas o que será que elas estão nos revelando, nos dizendo ou querendo nos dizer? É isso que a Psicanálise nos ensina: “observe como as crianças estão brincando, seus atos estão revelando o seu interior”.

Existe um escrito de Freud onde ele relata a experiência de ter ido visitar uma filha, que não se encontrava na casa paterna, e, enquanto, nesse espaço, estava a sós com uma criança, observou que ela atirava um carretel de linha para baixo de um armário e, a seguir, puxava-o; quando atirava o carretel, fechava o semblante e, quando o trazia de volta, abria em sorriso.

Após, atentamente, observar essa experiência, Freud realizou a seguinte leitura: a criança estava tentando compreender como a mãe desaparecia e, depois, aparecia novamente, expressando, de um lado, o sentimento de tristeza pelo afastamento da mãe e, de outro, a alegria pelo seu retorno. A experiência interna revelava-se em uma manifestação externa. E foi a partir desse ponto que Freud fez sua leitura interpretativa da experiência (certamente válida) da criança.

Contudo, importa ainda observar que o ato de brincar não só é revelador do inconsciente, ele também é catártico, ou seja, ele é liberador. Enquanto a criança brinca, ela, ao mesmo tempo, expressa e libera os conteúdos do inconsciente, procurando a restauração de suas possibilidades de vida saudável, livre dos bloqueios impeditivos. E, por vezes, os bloqueios já estão tão fixados, que eles impedem a criança até mesmo de brincar; fato este que estará nos sinalizando a necessidade de uma atenção mais cuidadosa para essa criança.

Por outro lado, as brincadeiras, por serem atividades, segundo a visão de Bruno Bettelheim, e pessoalmente concordo plenamente com ele, são instrumentos da criação da identidade pessoal, à medida que elas, nessa perspectiva, estabelecem uma ponte entre a realidade interior e a realidade exterior. Esse é o lado construtivo das brincadeiras.

Pelas atividades em geral e pelas brincadeiras em específico, a criança aproxima-se da realidade, criando a sua identidade. O princípio do prazer equilibra-se com o princípio da realidade, na criança, através das brincadeiras. Elas são o meio pela qual as crianças fazem o trânsito do mundo subjetivo simbiótico com a mãe para o mundo objetivo da lei do pai[11], criando o seu modo pessoal de ser e estar no mundo, criando sua identidade pessoal; ou, se se quiser, sua individualidade.

Assim sendo, o brincar, para as crianças, não será só o caminho real para o inconsciente doloroso, mas também para a construção interna da identidade e da individualidade de si mesmo.

Será que as brincadeiras seriam o caminho real só para a inconsciente e a identidade e individualidade da criança, ou para o inconsciente do adulto também? Vivenciar experiências ativas, segundo tenho observado, é também um caminho tanto para o inconsciente quanto para a construção de identidade e individualidade saudável dos adultos. Por vários anos, venho ensinando e trabalhando com o foco na ludicidade com meus estudantes na Pós-Graduação em Educação, na Faculdade de Educação, da Universidade Federal da Bahia[12] e tenho tido a oportunidade de ver como, também para adultos, essas atividades (brincadeiras) podem ser um caminho real, ao mesmo tempo, para o inconsciente reprimido assim como para a criatividade e, consequentemente, para a criação de uma individualidade mais saudável. Ou seja, também para os adultos, as atividades psico e emocionalmente dinâmicas são catárticas, o que quer dizer liberadoras das fixações psicológicas que ocorreram no passado e construtoras das alegrias do presente e do futuro.

Essa abordagem, a partir das contribuições da Psicanálise, se integra à visão de ludicidade como possibilidade de vivência da plenitude da experiência? Tomando por base os fundamentos do pensamento de Ken Wilber, que expusemos em capítulo anterior, podemos compreender que o que ocorre dentro da criança configura-se no quadrante superior esquerdo, na dimensão do Eu, a dimensão interna. O que ocorre nessa dimensão, nós, de fato, não podemos saber, a menos que a criança, de alguma forma, nos revele. É a sua experiência interior. Os atos externos poderão ser descritos comportalmentalmente, mas a experiência interna é de quem a vive e nós só podemos nos aproximar dela, da forma mais apropriada, pela partilha e, mais distantemente, por uma analogia com a nossa própria experiência.

Então, tendo vivido experiências semelhantes, podemos compassiva e empaticamente, sentir o que se passa dentro do outro. Seremos, então, ressonantes à experiência do outro e, deste modo, poderemos, aproximadamente, compreender o que está ocorrendo em seu interior. Ou pela interpretação, a partir de um olhar externo sobre as manifestações da criança ou do adulto, enquanto vivenciam sua experiência; mas, aí, será sempre uma interpretação externa, ainda que, se for realizada com cuidado e amorosidade, poderá ser muito útil no acompanhamento do processo de desenvolvimento do outro.

Assim sendo, cada criança, adolescente, ou adulto, enquanto vivencia uma experiência, que tem a característica de ludicidade, a vivencia como experiência plena dentro de si, em seu interior; externamente, podemos descrevê-la, o que não necessariamente significará que nos apropriarmos plenamente daquilo que se deu ou se dá nessa experiência plena interna do outro. Podemos nos aproximar de sua compreensão, porém para descrevê-la, somente aquele que vivenciou a experiência e, na medida que que for capaz de relatá-la.

 

 

 

2. As heranças piagetianas

 

Em Jéan Piaget, os jogos são compreendidos como recursos fundamentais dos quais o ser humano lança mão em seu processo de desenvolvimento, possibilitando a organização de sua cognição e de seu afeto, portanto a organização do seu mundo interior na sua relação com o mundo exterior.

O tema que Jean Piaget sempre se colocou, ao longo de sua vida de pesquisas sobre a inteligência humana, foi: como se dá o conhecimento? Como se constrói, no ser humano, o processo do conhecer? E sua resposta permanente foi: através das atividades. O ser humano, como um ser ativo, aprende por meio de sua ação. Age e compreende, por meio de uma dialética de assimilação e acomodação em suas relações com o mundo exterior.

“Assimilar” significa tornar um novo objeto ou ideia semelhante ao esquema mental já construído ou já consolidado pelo sujeito do conhecimento, ou seja, construir internamente a imagem do mundo exterior, através da articulação com as imagens e compreensões já existentes; propriamente um processo de “assemelhação” do novo objeto às imagens mentais já existentes; e “acomodar” significa a tendência do organismo de ajustar-se a um novo objeto e assim, alterar os esquemas de compreensão e ação já adquiridos anteriormente; com a aprendizagem, as estruturas cognitivas “acomodam-se” à nova imagem assimilada . É nessa dialética que se aprende e se desenvolve.

Evidentemente que os processos de assimilar e acomodar não são tão lineares e mecânicos quanto as definições, acima colocadas, parecem indicar. São processos profundamente complexos, pelos quais cada criança, cada adolescente e cada adulto estabelece o seu modo de relações e constrói o seu modo de agir e reagir, estando situado seja no contexto de sua intimidade, seja em determinada realidade natural e/ou sócio-histórica.

A assimilação é o meio pelo qual tornamos o mundo exterior semelhante ao nosso mundo interior, aos nossos sentimentos, aos nossos fantasmas, aos nossos conhecimentos. A acomodação é o processo que nos permite desvendar o que não sabemos e que não dominamos do mundo externo a nós mesmos e nos possibilita apreendê-lo, cognitiva, mas, ao mesmo tempo, emocionalmente. A dialética entre esses dois processos permite-nos a construção de nós mesmos e de nosso modo de ser na vida e no mundo, relacionados a nós mesmos, aos outros e a mundo material e cultural que nos envolve.

Os processos de assimilação e acomodação, usualmente operam dialeticamente, o que quer dizer que assimilamos para acomodar e acomodamos para assimilar. Por exemplo, ao adquirir um novo aparelho de som para minha casa, uma parte de como fazê-lo funcionar, eu já sei; assim sendo, assimilo (assemelho) elementos desse objeto a elementos que já detenho como conhecimento. Porém, tem uma parte que eu não sei; então, aprendo; é isso que é acomodar-se, ou seja, integrar a parte do mundo exterior que ainda não está integrada em mim, nessa experiência.

Esse processo possibilita, permanentemente, um aprofundamento do conhecimento cada vez que me detenho no objeto, com nova assimilação e nova acomodação.

Em seu livro A formação do símbolo na criança, Piaget[13] trabalha com os jogos como os recursos ativos dos quais o ser humano se serve em sua vida para construir-se a si mesmo, aprendendo a relacionar-se com o que está fora e em torno de si. É nesse contexto que Piaget estabelece o entendimento de que as atividades praticadas pelo ser humano, em seu processo de desenvolvimento, podem ser compreendidas como jogos e classificados em três tipos: jogos de exercício, jogos simbólicos e jogos de regras.

Entre o nascimento e os dois anos de idade, período em que Piaget situa a fase sensório-motora do desenvolvimento, dão-se os jogos de exercício, que são atividades funcionais, que tem sua origem na capacidade reflexa com a qual o ser humano nasce. São propriamente todas as atividades que a criança realiza para tomar posse de si mesma na sua relação com o mundo: mexer os braços, pernas, emitir sons, pegar, agarrar, puxar, empurrar, rolar, se arrastar, engatinhar, levar objetos na boca, imitar,... Até os dois anos de idade predominam esses jogos na atividade da criança, que, segundo Piaget, é o período de nossas vidas onde predomina a acomodação, em função do fato que a criança predominantemente imita o que os outros fazem, especialmente os adultos; ou seja, ela está mais voltada para apreender o mundo exterior.

A seguir, aproximadamente, entre os dois e os seis anos de idade, a criança dedicar-se-á aos jogos simbólicos; é a fase que o autor denomina de pré-operatória. Nesse período, dão-se os jogos simbólicos, onde predomina a assimilação. São os jogos da fantasia, período em que as crianças gostam muito de brincar de “faz de conta”. O mundo exterior é, então, de modo dialético, “tornado semelhante” às imagens existentes no mundo interior. Não importa, assim, a realidade como ela é; o que importa é o que ela pode parecer que é. Um lápis, que, na realidade, é um lápis, pode ser muitas coisas na fantasia, tais como um cavalo, um ônibus, um carro, um avião, um barco, ou simplesmente um objeto para ser mastigado... É também nesse período que as crianças gostam muito das estórias, dos contos de fada, das estórias imaginadas; mas, também, fabulam, constroem suas próprias estórias. Criam e recriam personagens e estórias. Esse é o período em que Piaget diz que predominam os jogos simbólicos.

Os jogos de regras vão predominar a partir dos seis/sete anos de idade para a frente, período denominado, inicialmente, de operatório concreto (sete aos doze anos) e, depois, de operatório formal (a partir aproximadamente dos doze anos em diante). É o período da aproximação e da posse da realidade. Em torno dos cinco, seis e sete anos, a criança vai se aproximando mais da realidade, onde se defronta não mais com as puras fantasias, mas sim, com os próprios dados do mundo real, o que implica em regras que dão forma ao mundo.

É nesse período que Freud situou, especialmente, a manifestação mais plena do Complexo de Édipo, período onde fortemente as regras e papéis sociais colocam para a criança os limites das relações sociais. É por essa idade que meninos e meninas iniciam a brincar com elementos que exigem regras definidas: brincar de casinha, pai, mãe, médico, advogado, enfermeira, etc. Ainda que em forma de brincadeira, são os elementos da vida real que iniciam a via à tona. Daí para frente, as crianças, os pré-adolescentes, os adolescentes e os adultos jogarão jogos de regras. Esses, como os anteriores jogos, auxiliarão a criança, o adolescente e o adulto aprender a operar com os entendimentos dos raciocínios abstratos e formais.

Nessa sequência de possibilidades de jogar --- exercício, simbólico e de regras ---, a aquisição das habilidades menos complexas servirão de base para as que exigem elementos mais complexos para o agir. Assim, quem só possui a capacidade para praticar os jogos de exercício, por si, não terá condições de praticar os outros tipos de jogos, que exigem estruturas psicológicas, mentais e lógicas mais desenvolvidas e complexas.

Todavia, aquele que já chegou ao estágio dos jogos simbólicos poderá, perfeitamente, praticar os jogos do estágio anterior (os jogos de exercício). O mesmo ocorrendo com as outras etapas do desenvolvimento e seus respectivos jogos. Isso quer dizer que quem pode o menos não pode o mais; porém, quem pode o mais, pode o menos também.

A partir dessas rápidas noções sobre os jogos em Piaget, podemos concluir que, para este autor, os jogos, como atividades que propiciam estados lúdicos, servem de recursos de autodesenvolvimento. Piaget vê os jogos como atividades que vão propiciando o caminho interno da construção da inteligência e dos afetos, à medida que se manteve atento a sua permanente pergunta: como o conhecimento se dá, ou seja, como é construída a capacidade do conhecer, que é interna?

Tendo por base a compreensão piagetiana dos jogos, podemos perceber a sua significação para a vida das crianças, dos pré-adolescentes, dos adolescentes, assim como para os adultos, na perspectiva de subsidiar o desenvolvimento interno, que significa a ampliação e a posse das capacidades cognitivas, afetivas e psicomotoras de cada um. Assim sendo, podemos e devemos nos servir das atividades que propiciem estados lúdicos, na perspectiva de que, ao mesmo tempo, propiciem resultados significativos para o desenvolvimento e formação dos nossos educandos.

Conhecendo a teoria e as suas possibilidades práticas, temos em nossas mãos instrumentos fundamentais para dirigir a nossa prática, propiciando oportunidades aos nossos educandos de internamente se construírem.

Com essa teoria em nossas mãos, podemos saber o que fazer com as brincadeiras e as atividades em cada fase de desenvolvimento de uma criança, um adolescente ou um adulto. Piaget nos ajuda a não colocar o carro antes dos bois. Faz-nos compreender que é preciso estarmos atentos ao tempo e às possibilidades de realizar e incorporar uma determinada ação.

Enquanto Freud esteve atento mais aos processos emocionais constituídos através do brinquedo e do jogo, Piaget esteve mais atento aos aspectos cognitivos trabalhados por esses mesmos recursos, sem que tenha descuidado dos aspectos afetivos e morais. Enquanto a psicanálise esteve mais atenta (não exclusivamente) à reconstrução da experiência emocional, Piaget esteve mais atento ao processo de construção dos conhecimentos e da afetividade. Todavia, ambos são de fundamental importância para quem deseja trabalhar com atividades educativas que possam produzir estados de ludicidade, seja na educação familiar, na educação escolar, na educação extra-escolar, seja na psicoterapia.

Aqui, também, podemos observar que a atividade só poderá trazer a sensação de experiência plena, na dimensão do sujeito que a vivencia. Praticar jogos de exercício, jogos simbólicos ou jogos de regras só poderá ser pleno para quem os pratica, mas parece que todos os que os praticam com inteireza, integridade e presença, chegam a esse cume de sensação de plenitude, o que nos permite admitir que as atividades lúdicas podem e devem ser utilizadas como recursos para a busca de um crescimento o mais saudável possível.





[1] Importa observar que Freud não se dedicou diretamente ao trabalho psicanalítico com crianças, ainda que tenha estudado o mundo infantil para compreender o adulto. Deixou um estudo de caso intitulado “Análise da fobia de um menino de cinco anos”, Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Editora Imago, volume X p. 11-158.

[2] Existem traduções disponíveis das obras tanto de Ana Freud como de Melanie Klein pela Imago Editora do Rio de Janeiro.

[3] Bruno Bettelheim, Uma vida para seu filho, Rio de Janeiro, Editora Campus.

[4] D.W. Winnicott, O brincar e a realidade, Rio de Janeiro, Imago Editora

[5] Arminda Aberastury, Psicanálise da Criança, Porto Alegre, Editora Artes Médicas.

[6] André Lapierre, Fantasmas corporais e prática psicomotora, S. Paulo, Editora Manole; A simbologia do movimento, Porto Alegre, Editora Artes Médicas; Psicanálise e análise corporal da relação, São Paulo, Editora Lovise.

[7] Sobre isso, Bruno Bettelheim, em Uma vida para seu filho, op. cit., 18a edição, pág. 145-145 diz: “A maior importância da brincadeira está no imediato prazer da criança, que se estende num prazer de viver. Mas a brincadeira tem duas faces adicionais, uma dirigida para o passado e outra para o futuro, como o deus romano Jano. A brincadeira permite que a criança resolva de forma simbólica problemas não resolvidos do passado e enfrente direta ou simbolicamente questões do presente. É também a ferramenta mais importante que possui para se preparar para o futuro e suas tarefas”.

[8] Stanley Keleman, que não é um psicanalista, mas o criador da Psicologia Formativa, nos lembra que é pela ação que o ser humano organiza sua experiência e constitui sua forma. Ver, por exemplo, o seu livro Anatomia emocional, Summus Editoria, SP.

[9] Bruno Bettelheim, em seu livro Uma vida para seu filho, op. cit., é muito claro nisso; para tanto, vale a pena ver a II Parte do livro, intitulada “Desenvolvendo a individualidade”, onde ele faz um longo estudo sobre a brincadeira e os jogos no processo de formação da individualidade da criança.

[10] David Boadella, Correntes da vida, São Paulo, Summus Editorial, 1992, p. 13.

[11] Ver D.W. Winnicott, em O Brincar e a Realidade, op. cit., sôbre a questão dos fenômenos e dos objetos transicionais.

[12] Iniciei meu trabalho com o estudo, ensino e com a prática das atividades lúdicas, em 1992, com as quais trabalhei até 2010.

[13] Jéan Piaget, A formação do símbolo na criança, Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora, 1990.





 

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