quarta-feira, 9 de setembro de 2020

04 LUDICIDADE COMO ÁREA DE CONHECIMENTO


OBSERVAÇÃO - Ao caminhar pela leitura do presente texto, o leitor deverá ter presente que ele é parte de artigo publicado pela primeira vez em Educação e Ludicidade (Ensaios 02) --- Lucicidade: o que é isso?, sob a organização da Profa. Bernadete Porto --- GEPEL/FACED/UFBA, 2002, páginas 22 a 60, sendo que o texto que se segue está entre as páginas 23 e 33, com uma ou outra atualização.

 

 

Interessa abordar a ludicidade como uma experiência interna do sujeito do conhecimento[1]. Ludicidade é um fenômeno interno do sujeito que vivencia a experiência, que se expressa em condutas socialmente observáveis. Desse modo, ludicidade está sendo compreendida partir do lugar interno do sujeito e não das “atividades”, em si, como condutas observáveis.

Para alargar um pouco a compreensão de que “o ato lúdico propicia uma experiência plena para o sujeito” e, para situar essa compreensão no seio de outros possíveis tratamentos da ludicidade, iremos nos servir do auxílio dos estudos de Ken Wilber, que nos ajudarão, com certa facilidade, a compreender que aquilo que estamos propondo tem a ver com uma das dimensões epistemológicas do ser humano, sinalizadas por esse autor; no caso, a sua dimensão interna; a dimensão do seu desenvolvimento, da sua identidade, da sua integridade. Na expressão de David Boadella, um psicoterapeuta inglês, criador da área de conhecimentos Biossíntese, essa dimensão do desenvolvimento humano dá-se como um ground interno[2], uma sustentação interna.


1. O "eu" como sustentação de uma área de conhecimentos

Ken Wilber[3], em seus livros Uma Breve História do Universo[4]O olho do espírito[5], e em União da alma e dos sentidos[6], nos indica que o ser humano possui quatro dimensões epistemológicas, que devem ser levadas em consideração, quando assumimos abordá-lo sob a “ótica integral”.

Na compreensão desse autor, o ser humano é constitutivamente um todo único e indivisível, organizado sob quatro dimensões, vividas e realizadas, simultaneamente, em suas múltiplas experiências, sendo que cada uma delas tem predominância, em um determinado momento da ação e da vida cotidiana. O diagrama abaixo, proposto pelo autor, nos possibilita, de modo simples e visual, perceber em qual dessas dimensões se situa a ludicidade, que de maneira integrada, atua na dinâmica das outras dimensões. Importa estar ciente de que as dimensões são distintas, porém, atuantes de maneira integrada:


                     

 

Diagrama dos quadrantes constitutivos do ser humano no ver de Ken Wilber[7]

 

O diagrama acima nos auxilia na compreensão de que cada experiência humana pode ser abordada epistemologicamente sob quatro formas distintas: 1. individual/interior; 2. individual/exterior; 3. coletiva/interior; 4. coletiva/exterior.

Compreendendo o gráfico proposto pelo autor. Do lado esquerdo do gráfico, identificamos as dimensões e as abordagens sob a ótica  “interior” do ser humano (interior individual e interior coletivo); do lado direito, identificamos as dimensões e abordagens sob a ótica “exterior” do ser humano (exterior individual e exterior coletivo);. Na parte superior do gráfico, encontram-se as dimensões individuais, sob as óticas interior e exterior; e, por último, na parte inferior, as dimensões coletivas, sob a ótica interior e sob a ótica exterior.

Com isso, podemos compreender que o ser humano, em todas as suas experiências, realiza-se e expressa-se em suas quatro dimensões, ainda que não consigamos, devido o modo operativo de nosso sistema nervoso, abordá-las cognitivamente ao mesmo tempo, importa estarmos conscientes da presença de cada uma delas, assim como de todas ao mesmo tempo.

Essas dimensões são: (01) a dimensão individual interna, que tem a ver com sentimento, com mente, com a compreensão interna, interpretativa, hermenêutica do sujeito (representada, no gráfico, pelo quadrante superior esquerdo); (02) a dimensão individual externa, visível, observável, comportamental (representada no gráfico pelo quadrante superior direito); (03) a dimensão coletiva subjetiva engloba os valores, a cultura e a comunidade dentro da qual o portador da experiência está inserido (representada, no gráfico, pelo quadrante inferior esquerdo); e, por último, (04) a dimensão coletiva objetiva, sistêmica, constituindo uma rede interobjetiva de relações observáveis (representada no gráfico, pelo quadrante inferior direito).

Toda e qualquer experiência humana se realiza e se expressa simultaneamente nessas quatro dimensões, ainda que, cognitivamente, só consigamos abordar de modo distinto cada uma delas. Ainda que essas dimensões se dêem num todo em nossa experiência, nós compreendemos a realidade da experiência em conformidade com a ótica epistemológica que estivermos adotando: individual interna (subjetiva), individual externa (comportamental), coletiva interna (ética, moral, cultura), coletiva externa (ciência nas suas variadas possibilidades).

A dimensão individual interna é aquela onde o ser humano vivencia uma experiência, dentro de si mesmo, na dimensão do eu; dimensão que, na expressão de Wilber, garante o crescimento individual interno, através das múltiplas fases de desenvolvimento, que vão do pré-pessoal, pelo pessoal para o transpessoal[8]. Esse é o campo do pensar filosófico, da espiritualidade, da introspecção psicológica, da criação artística, da percepção estética...

A dimensão coletiva interna é aquela onde o ser humano vivencia sua experiência de comunidade, dos valores e sentimentos de viver e conviver com o outro e com os outros, vivência da cultura e dos valores comuns, que dirigem a vida. É a dimensão do nós comunitário, onde se faz presente a formação e a vivência da ética e da moral. É o campo da sensação, dos sentimentos e da vivência com o outro, do convívio, da ética, da moral...

A dimensão individual externa expressa, objetivamente, aquilo que se passa na nossa experiência individual, através das manifestações do nosso corpo, dos nossos sistemas fisiológicos (nervoso, circulatório, respiratório) e do nosso comportamento psicossocial. São elementos que podem ser estudados objetivamente, via os meios de mensuração. É o campo do comportamento objetivo individual, da fisiologia, da anatomia, da neurofisiologia, das ciências comportamentais, como a psicologia comportamental...

A dimensão coletiva externa se dá nas relações sistêmicas que constituem nossa vida, através das relações interobjetivas. As múltiplas relações que atuam e reagem entre si, constituindo sistemas de elementos e de variáveis que determinam dialeticamente nosso modo de ser e de viver. É o campo do coletivo, que pode ser estudado objetivamente sob a ótica do funcionamento dos sistemas. Esse campo é estudado pela sociologia, pela história social, pela política, pelas abordagens sistêmicas em geral.

O campo do eu só pode ser percebido, estudado e compreendido pela interpretação. O campo do nós só pode ser verdadeiramente assimilado, estudado e compreendido pela vivência mútua da cultura, com todos os seus valores; valores que só podem ser apreendidos adequadamente por quem os vivencia. O campo do ele, por outro lado, seja o individual ou o coletivo, pode e deve ser apreendido pelos sistemas de mensuração e/ou demonstração objetivos. Segundo Wilber esses dois campos --- do ele individual e do ele coletivo --- poderiam ser reunidos em um único campo --- o campo do ele ---, pois que ambos estão compreendidos objetivamente, como campo do outro, independente de cada um de nós.

Desse modo, uma experiência integral do ser humano se realiza em suas quatro dimensões, que permitem (01) uma vivência individual da estética e da espiritualidade, (02) assim como a experiência individual  da ética, da moral e da cultura, ambas assentadas, (03) sobre a materialidade externa da constituição bio-psicológica de cada um, e (04) sobre dos sistemas sociais e históricos de relações com o outro. 

Dentro deste quadro de referência, toda e qualquer experiência humana poderá ser abordada sob a ótica de cada um desses quatro quadrantes, ou dimensões, à medida que, se elas se dão dessa forma, permitem sua abordagem segundo as quatro referidas óticas epistemológicas.

Ou seja, qualquer atividade humana é vivida, simultaneamente, nas quatro dimensões e, por isso poderá ser abordada, também, segundo os quatro quadrantes. É exatamente devido a experiência dar-se (realizar-se) nas quatro dimensões, que ela pode assim ser abordada. O que quer dizer que uma atividade humana --- seja ela qual for --- se dará nas quatro dimensões e, deste modo, deverá ser abordada.

Será abordada pela ótica do quadrante superior esquerdo, ótica interna do sujeito que realiza e vivencia essa atividade. Poderá ainda ser abordada pela ótica do quadrante inferior esquerdo --- ótica da convivência com os outros e da cultura ---, o que permitirá vivenciar e desvendar os sentimentos comunitários, resultantes do presente ou de um longo processo de heranças socioculturais, através dos quais, esses sentimentos adquiriram um sentido ou está adquirindo um sentido novo neste momento de convivência. Poderá ainda ser abordada sob a ótica do comportamento individual, externa e objetivamenteobservável. Por último, essa atividade poderá ser abordada como um fenômeno social, através da observação, da contagem de frequências das vezes que se manifesta no todo da sociedade, na qual está inserida, assim como das relações intersubjetivas, que dão origem, sistemicamente, às suas características.

 

2. A ludicidade como uma experiência interna do sujeito que a vivencia

 

Tomando esse referencial por base, quando definimos ludicidade como um estado de consciência, estamos falando a partir do quadrante superior esquerdo, ou seja, da vivência e percepção interna do sujeito. Uma atividade que poderá ser plena exclusivamente para a pessoa como sujeito, só ela poderá vivenciar a “plenitude da experiência”, através de alguma atividade; a “plenitude” é uma experiência interna do sujeito. A ludicidade, nesta perspectiva, é interna.

Objetivamente, poderemos, a partir do quadrante superior direito, descrever uma atividade como lúdica, seu algoritmo, sua configuração, suas regras, suas práticas visíveis, devido ao fato de que muitas pessoas, tendo vivido tais atividades, sentiram-se “plenas” consigo mesmas. Porém, importa observar que para um determinado individuo essa atividade, que descrevo como lúdica, poderá não sê-lo, em função de sua história pessoal de vida (quadrante superior esquerdo, sua biografia pessoal), assim como em função do meio social, no qual está inserido (quadrante inferior esquerdo, sua cultura) e em função de sua assimilação interna dessa herança.

Deste modo, quando estamos definindo ludicidade como um estado de consciência, onde se dá uma experiência em estado de plenitude, não estamos falando, em si, das atividades objetivas que podem ser descritas sociológica e culturalmente como atividade lúdica, como jogos ou coisa semelhante.

Estamos, sim, falando do estado interno do sujeito que vivencia a experiência lúdica. Mesmo quando o sujeito está vivenciando essa experiência com outros, a ludicidade é interna; a partilha e a convivência poderão oferecer-lhe, e certamente oferecem, sensações do prazer da convivência, mas, ainda assim, essa sensação é interna a cada um, ainda que o grupo possa harmonizar-se numa sensação que se expressa de forma comum a todos; porém um grupo, como grupo, propriamente não sente, mas soma e engloba um sentimento que se torna comum; porém, em última instância, quem sente é o sujeito individual.

Certamente que vivenciar uma experiência em grupo é muito diferente de praticá-la sozinho. O grupo tem a força e a energia do grupo; ele se movimenta, se sustenta, estimula, puxa a alegria, mas somente cada indivíduo, nesse conjunto vital e vitalizado, poderá viver essa sensação de alegria, partilhada no grupo e, pois, de ludicidade. Isso é facilmente perceptível, quando ocorrem partilhas a respeito da experiência vivida. A situação foi única, mas as sensações e percepções são tão variadas quando são os indivíduos que vivenciaram a experiência.

Deste modo, uma atividade descrita objetivamente, seja pela sua estrutura, seja pelo seu comprometimento com uma determinada herança sociocultural --- como o folclore, os brinquedos tradicionais ... ---, não necessariamente será lúdica para o sujeito que a vivencia. Pelo hábito linguístico ou sociocultural, poderemos descrevê-la como “lúdica”, mas, não necessariamente ela propiciará a todos que a vivenciarem um estado de plenitude de experiência, isto é, um estado lúdico. Vamos tomar, a título de exemplo, a brincadeira de “pular corda”.

Para mim, ela propiciará um estado interno de inteireza, alegria, prazer, enquanto estiver, no seio de um grupo, pulando corda. Dar-me-á inteireza, alegria, prazer, praticando essa experiência sozinho e, ao mesmo tempo, na interação com as outras pessoas, participando e partilhando da felicidade do momento. Todavia, para outra pessoa, esta mesma atividade, poderá trazer desprazer, seja devido nunca ter pulado corda e não estar interessada em tentar aprender agora, seja devido ter tido uma experiência negativa com esse brinquedo em sua história pessoal de vida, ou qualquer outro elemento que não lhe permita vivenciar agora essa experiência com alegria, prazer, integridade, portanto, de maneira lúdica.

Assim sendo, objetivamente  --- dimensão externa das possibilidades de condutas ---, a atividade pode ser descrita como lúdica, porém, ela não necessariamente trará a mesma experiência de plenitude para todos os participantes da experiência, ainda que o grupo seja um condicionante fundamental para a participação do maior número de pessoas em uma atividade que seja coletiva, como sinalizamos anteriormente. Ao contrário do estado de bem-estar, de plenitude, que uma experiência traz para muitos, ela poderá sinalizar para uma pessoa --- ou para várias pessoas de um grupo --- uma dor que estava guardada internamente. Então, certamente que a experiência, ainda que, objetivamente, seja cognominada de “lúdica”, para essa pessoa ou para essas pessoas, não será lúdica.

Nesse caso, a dor interna que a atividade, objetivamente definida como lúdica, elicia, não nos permite defini-la como lúdica; fato que nos conduz a entender que, em si mesma, uma experiência não é lúdica nem não lúdica; é simplesmente uma experiência. A ludicidade, então, é um estado interno de quem vivencia a experiência.

As atividades que objetivamente são tomadas como lúdicas e que, por alguma razão interna da pessoa, possam fazer emergir alguma dor, limite ou dificuldade, elas possibilitam ao sujeito, caso seja capaz de “olhar para elas”, uma oportunidade da cura dessa dor, dificuldade ou limite interno. Por cura, aqui, estamos entendendo uma oportunidade de fazer contato com um aspecto doloroso de sua vida, mas que, também e ao mesmo tempo, aponta para um aspecto saudável de si mesmo, da alegria, do prazer, da convivência, da não-rigidez... Por vezes, são dores vividas no passado, porém nunca compreendidas ou elaboradas emocional e cognitivamente.

Em síntese, ao afirmar que a atividade lúdica traz uma oportunidade de experiência plena, importa estar atento para o “olhar” a partir do qual estamos afirmando isso: a dimensão do eu, a dimensão interna.

E é em função dessa visão que se está defendo a ideia de que a vivência que pode ser denominada de lúdica é aquela que propicia ao sujeito uma experiência de plenitude, devido ela ir para além dos limites do eu de cada um, constituído em sua história de vida.

A descritiva comportamental individual e/ou coletiva, assim como os valores comunitários, que sustentam uma compreensão dessa experiência, usualmente compõem o “entorno” dessa sensação de experiência plena, que podem ser tratadas por outros âmbitos do conhecimento, como vimos acima; contudo, esses tratamentos são externos à experiência interna.

Compreendemos, pois, que a ludicidade é um estado interno ao sujeito. Algumas atividades, que são externas ao sujeito e usualmente propiciam entretenimento, amistosidade, criatividade, expressão livre... podem ser adjetivadas de “lúdicas”, como se fossem características dessas atividades, mas cientes de que ludicidade é uma característica interna ao sujeito que vivencia a experiência; ciente, pois, que ludicidade não está impressa no mundo externo ao sujeito. Ela não é objetiva, mas subjetiva, por isso, em relação aos quadrantes do conhecimento, formulados por Ken Wilber, a experiência lúdica se enquadra no primeiro quadrante superior esquerdo, o quadrante que representa a experiência individual interna.

 

 

 



[1] Ao caminhar pela leitura do presente texto, o leitor deverá ter presente que ele é parte de artigo publicado pela primeira vez em Educação e Ludicidade (Ensaios 02) --- Lucicidade: o que é isso?, sob a organização da Profa. Bernadete Porto --- GEPEL/FACED/UFBA, 2002, páginas 22 a 60.

[2] Ground interno, aqui, é tomado no sentido de base, suporte, capacidade de sustentar a própria experiência a partir de uma qualidade interior fluída e não a partir de recursos externos, aprendidos como lições que devem ser cumpridas.

[3] Ken Wilber é um biólogo norte-americano que, nas duas décadas finais do século XX, investiu largamente na área do autodesenvolvimento, transitando da Biologia para a Filosofia, tendo tornado públicas suas compreensões a respeito do ser humano. No caso, aqui nos interessou e nos interessa sua classificação das áreas de conhecimento, onde a ludicidade

[4] Ken Wilber, Uma breve História do Universo, Rio de Janeiro, Ed. Nova Era, 2001.

[5] Ken Wilber, O olho do espírito, São Paulo, Ed. Cultrix, 2001.

[6] Ken Wilber, O olho do espírito, São Paulo, Ed. Cultrix, 2001.

[7] Ken Wilber, Uma breve história do universo: de Buda a Freud, religião e psicologia unidas pela primeira vez, Rio de Janeiro, Record Nova Era, 2001, p. 93.

[8] Importa sinalizar que Ken Wilber compreende que o ser humano, em sua trajetória de crescimento e desenvolvimento, passa pelas fases “pré-pessoal”, do 0 (zero) aos sete anos de idade;  “pessoal”, dos 7 anos à vida adulta e profissional; e “transpessoal”, fase construída por escolha e investimento de cada ser humano num caminho de autocuidado, autoconhecimento  e de autodesenvolvimento.






 

03 COMPREENDENDO O CONCEITO DE LUDICIDADE





OBSERVAÇÃO - O presente texto representa parte do artigo “Ludicidade e formação do educador” publicado na Revista Entreideias, FACED/UFBA, Salvador, v. 3, n. 2, p. 13-23, jul./dez. 2014. A parte relativa à formação do educador foi supressa para esta publicação, permanecendo exclusivamanete a conceituação de Ludicidade.

 


Ludicidade não é um termo dicionarizado. Vagarosamente, ele está sendo inventado, à medida que seguimos tendo uma compreensão mais adequada do seu significado, tanto em conotação --- seu significado ---, quanto em extensão --- o conjunto de experiências abrangidas por ele.

Usualmente, quando se fala em ludicidade, se compreende, no senso comum cotidiano, que se está fazendo referência às denominadas “atividades lúdicas”, tais como brincadeiras sejam elas infantis ou adultas --- por vezes, até de mau-gosto ---, entretenimentos,  atividades de lazer, excursões, viagens de férias, viagens para grupos...

Todas essas atividades, denominadas de lúdicas, poderão ser “não lúdicas” a depender dos sentimentos que se façam presentes em quem está participando delas, numa determinada circunstância. Por exemplo, quando ocorre que uma criança que, por alguma razão biográfica (usualmente de caráter psicológico), não gosta de pular corda, essa atividade “brincar de pular corda”, para ela, além de incômoda, será “chata” sem nenhuma ludicidade. A alma da criança não estará presente no que estará fazendo, à medida que não lhe é lúdico praticar essa atividade que, usualmente, é denominada de lúdica, mas que, para ela, é incômoda e, por isso, sem alegria. O mesmo pode ocorrer com pessoas adultas e idosas.

Será que podemos conhecer alguma coisa mais incômoda do que ser obrigado a praticar uma atividade, que todos dizem que ser lúdica, mas, para nós, não o é?

Tendo em vista compreender o exposto, relato que, em uma das disciplinas que ensinei, nos finais dos anos 1990, no Programa de Pós-Graduação em Educação, FACED/UFBA, num determinado dia, em sala de aula, praticamos a brincadeira --- certamente conhecida de muitos, senão de todos --- denominada de “cabra cega”, tendo como objetivo retomar, vivenciar e reconhecer essa experiência sociocultural da qual a maioria de todos nós participamos, quando crianças e, a seguir, dialogar sobre o seu significado existencial, sociológico, psicológico e didático, como também, e de modo especial, compreender o que ocorre internamente com quem vivencia essa experiência.

A metodologia teórico-prática utilizada nas aulas para que os estudantes, que atuariam, no futuro, com outras pessoas, pudessem compreender por experiência pessoal o que ocorre internamente com alguém que pratica essa determinada atividade. O educador é um orientador, mas também um acompanhante do aprendiz, por isso, não basta ter estudado em livros o que ocorre com o outro enquanto vivencia uma experiência; daí a necessidade de aprender experimentando, a fim de que possa, a partir da experiência pessoal, compreender o outro quando com ele estiver atuando, seja em sala de aula ou em outra circunstância.

Só para lembrar, a configuração da brincadeira da “cabra cega” se dá da seguinte forma: as crianças formam uma roda, seja em uma sala de aulas ou em um pátio, e uma delas será a cabra cega. Para tanto, terá os olhos vendados com um lenço e, a seguir, sem a ajuda de ninguém, tendo em vista “pegar” um dos participantes, que, quando apanhado, será a próxima cabra cega.

 Os participantes, enquanto a situação ocorre, torcem, falam, gritam, ajudam, protegem, provocam, riem, fogem... A cabra cega tenta pegar um dos participantes e, então, a movimentação de aproximação, distanciamento, toques... se sucedem até que alguém da roda seja apanhado, o que lhe garantirá o lugar de “cabra cega”.

Uma estudante --- adulta, pois que trabalhava na Pós-Graduação ---, na circunstância descrita, permaneceu reticente no decorrer da brincadeira; não deu nenhuma chance à possibilidade de ser apanhada pela cabra cega, colocando-se fora da roda, defendendo-se da possibilidade de vir a ser a próxima “cabra cega”, e, por isso, a ter os olhos vendados.

No momento da partilha, envolvendo compreensões, experiências pessoais, sentimentos..., essa estudante, ao partilhar seu modo reticente nessa atividade, relatou o seguinte: quando criança, brincando de “cabra cega”, com os olhos vendados, seus colegas de roda permitiram que ela --- cegamente --- caminhasse a esmo e, então, enquanto todos riam, falavam, provocavam, deixaram que ela trombasse com uma cerca de arame farpado (brincavam num espaço aberto de rua), machucou-se e todos continuavam a rir.  “Brincar de cabra cega (e atividades semelhantes) nunca mais” foi a decisão que tomou naquele momento.

Essa atividade recebe a qualificação de “lúdica” --- desde que, supostamente, “brincar de cabra cega é lúdico” --- mas, para essa menina, a atividade não fora nada lúdica, frente à sua incômoda vivência, ocorrida em outro momento de sua vida; a memória da experiência não era lúdica, mas sim sofrida. De fato, em si mesma, uma atividade não é lúdica nem “não-lúdica”. Pode ser, ou não, a depender do estado de ânimo de quem está participando, assim como da circunstância em que participa da atividade.

Por si, brincar de cabra cega, simplesmente, é uma atividade, que pode ser descrita em seus detalhes; mas a sua qualidade dependerá da vivência de quem participa da atividade, em uma determinada circunstância.

A experiência relatada acima se multiplica aos milhares na vida de cada um de nós e na vida das pessoas em geral. Qualificamos a realidade que nos cerca e que vivenciamos com as determinações das experiências que tivemos no transcorrer de nossas vidas. As experiências nos marcam. Existe um ditado popular que traduz bem essa compreensão, dizendo que: “Gato escaldado tem medo de águia fria”[1].

Nossos estados emocionais e as circunstâncias onde vivenciamos uma determinada experiência possibilitam sua qualificação como positiva ou negativa. No caso da estudante, acima relatado, era impossível qualificar a brincadeira da cabra cega como “lúdica”, em decorrência da memória relativa a episódios existenciais passados.

Na vida adulta, em variadas circunstâncias, após tecer uma observação, supostamente jocosa, que incomoda outra pessoa, usualmente dizemos: “Eu só estava brincado”. Cabe perguntar: “que brincadeira, hein?”

O mesmo, por vezes, poderá ocorrer com atividades sócio-culturais coletivas indicadas como lúdicas, mas que, para determinadas pessoas e em determinadas circunstâncias, elas não têm nada de lúdicas.

Os leitores deste texto poderão produzir uma lista infindável dessas circunstâncias, onde atividades são qualificadas como “lúdicas” e efetivamente não tem “nada de lúdicas” para quem as vivencia.

Dessa forma, não existem atividades que, por si, sejam lúdicas. Simplesmente existem atividades. E elas serão qualificadas como lúdicas, ou não, a depender do sujeito que as vivencia e da circunstância onde isso ocorre.

Contudo, então, vale perguntar: livros didáticos que ensinam praticar atividades lúdicas junto aos educandos, livros que abordam historicamente as atividades denominadas de lúdicas, assim como os livros que abordam sociologicamente essas atividades, não têm qualquer razão de ser?

Ocorre que essas abordagens tomam essas atividades sempre do ponto de vista objetivo e externo ao sujeito que as pratica e as vivencia e, usualmente, também sem ter presentes as circunstâncias onde essas experiências são vivenciadas. Estuda-se abstratamente o que se vê, não o que se sente numa determinada circunstância.

Então, existem livros didáticos que ensinam como praticar atividades lúdicas junto aos educandos; existem os livros que tratam da história das atividades lúdicas, abordando como os povos, culturas e grupos humanos praticaram atividades que foram consideradas como lúdicas; e, por último, existem os livros de sociologia do brinquedo ou das atividades lúdicas que abordam essas atividades no seio das variáveis sociológicas, permitindo compreendê-las dentro desse contexto sociocultural. Nenhuma dessas abordagens toma como objeto do seu estudo a experiência interna do sujeito que pratica essas atividades. As abordagens, acima referidas, tomam como seu objeto de estudo a fenomenologia externa ao sujeito, fator que não possibilita estudar e compreender o que se passa na intimidade de quem vivencia a experiência.

Durante os anos que trabalhei com atividades lúdicas na Pós-graduação em Educação, FACED/UFBA, entre os anos de 1992 e 2006, em meus estudos, fui compreendendo que a ludicidade é um estado interno ao sujeito, ainda que as atividades, em si, sejam expressas e observáveis de modo externo ao sujeito que as pratica e vivencia. A experiência lúdica (= ludicidade), que é uma experiência interna ao sujeito, só pode ser percebida e expressa pelo sujeito que a vivencia[2].

Ken Wilber, em seus estudos sobre a consciência diz que nossas compreensões em torno da vida e do mundo se dão por quatro dimensões: a dimensão subjetiva individual, que só pode ser percebida e expressa pelo próprio sujeito; a dimensão subjetiva coletiva, que determina os modos de ser de uma comunidade ou sociedade, tal como ocorre nos pactos sociais e éticos; a dimensão objetiva individual, que é composta pelos comportamentos individuais que podem ser observados e descritos a partir de um indivíduo, como ocorre nos estudos da psicologia; e, por último, a dimensão objetiva coletiva, cuja fenomenologia pode ser observada, descrita e compreendida pelas ciências humanas.

Nesse contexto, a ludicidade, como um estado interno do sujeito, só pode ser vivenciada e, por isso mesmo, percebida e relatada pelo próprio sujeito. Ela pertence à primeira dimensão sinalizada por Wilber[3], a dimensão subjetiva individual. Então, nesse contexto, a ludicidade configura-se como um estado interno ao sujeito; contudo, as atividades denominadas como lúdicas pertencem ao domínio externo ao sujeito e, portanto, à dimensão objetiva coletiva, segundo a classificação desse autor. Ludicidade e atividades lúdicas são, pois, fenômenos diversos e, dessa forma necessitam ser compreendidos.

Esse entendimento epistemológico ajuda-nos a não confundir ludicidade com atividades lúdicas, distinguindo-as, ainda que sem separá-las. Fato que também nos permite não desqualificar uma dessa abordagens, qualificando excessivamente a outra. Simplesmente são fenômenos epistemologicamente distintos.

Compreendida dessa forma, a ludicidade pode se fazer presente em todas as fases da vida. Dentro do útero materno, podemos viver os “estados oceânicos”, sinalizados por Freud. Em nossa infância, quantas experiências lúdicas não foram vivenciadas por cada um de nós? Nessa fase de vida, nossos olhos brilharam por tão pequenas coisas --- um boneco, uma boneca, um carrinho, um iô-iô, uma corda para pular, um velocípede, uma bola, um pirulito, um picolé, por um colo de pai, por um colo de mãe, pelas histórias que nossas avós contavam... e por aí se vai; pequenas coisas que nos deram imensos prazeres e alegrias. Em nossa adolescência, os amigos, as amigas, as conversas, os passeios, a roupa da moda, a posse de um objeto desejado, a posse de um lugar entre os pares em função de uma habilidade que havíamos desenvolvido seja no esporte, na música, nos conhecimentos, uma viagem desejada... Na juventude, quantos sonhos e quantas alegrias nas pequenas conquistas rumo à vida adulta, em direção ao trabalho profissional, à manutenção e a sobrevivência, ao amor, ao serviço à vida. Na maturidade, tantos são os possíveis momentos lúdicos, no trabalho, nas relações amorosas, nas ciências, nos estudos, nas conversas, nas conferências, nos momentos de entretenimento e lazer... Com a idade mais avançada, o estado lúdico pode advir das diversas realizações naquilo que se gosta de fazer --- trabalho, pintura, música, poesia, escrever, conversar, recordar, estar com filhos, netos, netas, viajar...

Então, ludicidade é um estado interno, que pode advir das mais simples às mais complexas atividades e experiências humanas. Não necessariamente a ludicidade se dá em algo externo ao sujeito. Pode advir de qualquer atividade que faça os olhos brilharem.

Ela não é igual para todos. Experiências que podem gerar o estado lúdico para um não necessariamente gera estado lúdico para outro, à medida que ludicidade não pode ser medida de fora, mas só pode ser vivenciada e expressa por cada sujeito, a partir daquilo que lhe toca internamente, em determinada circunstância.

Algumas atividades poderão parecer “chatas” para um, mas “lúdicas” para outros. Como isso pode ser? Exatamente devido a ludicidade ser um estado interno ao sujeito e as atividades serem externas.

David Boadella, cidadão inglês, criador da Biossíntese, área psicoterapêutica corporal, estando no Brasil, ouviu de um músico a afirmação --- “A música é minha psicoterapia” ---, ao que retrucou, quase em forma de trocadilho, --- “E, a psicoterapia é minha música”. O que é alegre, prazeroso, pleno para um, não necessariamente o será para outro.

Para finalizar, no contexto das filosofias orientais, se diz que o estado de êxtase --- estado de plenitude interna --- é um “estado búdico”. Parafraseando, poderíamos dizer que o “estado lúdico é um estado búdico”.  Um estado interno de bem-estar, de alegria, de plenitude, que pode e deve ocorrer em qualquer momento ou estágio da vida de cada ser humano.

Daí, as consequências: certamente que muitas de nossas práticas existenciais e sociais que afirmamos, pelo senso comum, serem lúdicas não o são, simplesmente devido não gerarem um estado interno de bem-estar, alegria, prazer e plenitude. E, ao contrário, muitas outras atividades, que desconsideramos como significativas, geram em tantas outras pessoas estados internos de plenitude. A ludicidade não pode ser julgada de fora, mas de dentro de si mesmo. Em síntese, ludicidade tem a ver com experiência interna pessoal, ainda que sendo vivenciada em uma situação coletiva. Todos podem estar felizes, porém, cada um a seu jeito.

 

 

 



[1] Freud nos lembra que uma reação emocional desproporcional à uma circunstância do presente, não é do presente, mas do passado. E os neurologistas, após a possibilidade de estudar o sistema nervoso enquanto estamos vivos, descobriram que as reações intempestivas de medo têm sua fonte de atuação nas “amígdalas cerebrais”, onde se encontram registradas as memórias do medo. Sobre isso, ver Joseph LeDoux, O cérebro emocional: os misteriosos alicerces da vida emocional, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1998, cito a 2ª edição.

[2] Ver Bernadete de Souza Porto (org), Educação e Ludicidade – Ensaios 02, GEPEL/FACED/UFBA< 2002, pág. 22-60.

[3] Ver Ken Wilber, Uma breve história do universo: de Buda a Freud, Nova Era, Rio de Janeiro, 2011, páginas 91-106.