OBSERVAÇÃO - Ao caminhar pela leitura do
presente texto, o leitor deverá ter presente que ele é parte de artigo publicado pela primeira vez em Educação
e Ludicidade (Ensaios 02) --- Lucicidade: o que é isso?, sob a
organização da Profa. Bernadete Porto --- GEPEL/FACED/UFBA, 2002, páginas
22 a 60, sendo que o texto que se segue está entre as páginas 23 e 33, com uma
ou outra atualização.
Para alargar um pouco a compreensão de que “o ato lúdico propicia uma
experiência plena para o sujeito” e, para situar essa compreensão no seio de
outros possíveis tratamentos da ludicidade, iremos nos servir do
auxílio dos estudos de Ken Wilber, que nos ajudarão, com certa facilidade, a
compreender que aquilo que estamos propondo tem a ver com uma das dimensões
epistemológicas do ser humano, sinalizadas por esse autor; no caso, a sua
dimensão interna; a dimensão do seu desenvolvimento, da sua identidade, da sua
integridade. Na expressão de David Boadella, um psicoterapeuta inglês, criador
da área de conhecimentos Biossíntese, essa dimensão do desenvolvimento humano
dá-se como um ground interno[2],
uma sustentação interna.
1. O "eu" como
sustentação de uma área de conhecimentos
Ken Wilber[3], em seus
livros Uma Breve História do Universo[4], O
olho do espírito[5],
e em União da alma e dos sentidos[6], nos indica que o ser humano possui
quatro dimensões epistemológicas, que devem ser levadas em consideração, quando
assumimos abordá-lo sob a “ótica integral”.
Na compreensão desse autor, o ser humano é constitutivamente um todo único e indivisível, organizado sob quatro dimensões, vividas e realizadas, simultaneamente, em suas múltiplas experiências, sendo que cada uma delas tem predominância, em um determinado momento da ação e da vida cotidiana. O diagrama abaixo, proposto pelo autor, nos possibilita, de modo simples e visual, perceber em qual dessas dimensões se situa a ludicidade, que de maneira integrada, atua na dinâmica das outras dimensões. Importa estar ciente de que as dimensões são distintas, porém, atuantes de maneira integrada:
Diagrama dos quadrantes constitutivos do ser humano no ver de Ken Wilber[7]
O diagrama acima nos auxilia na compreensão de que cada experiência
humana pode ser abordada epistemologicamente sob quatro formas distintas: 1. individual/interior;
2. individual/exterior; 3. coletiva/interior; 4. coletiva/exterior.
Compreendendo o gráfico proposto pelo autor. Do lado esquerdo do
gráfico, identificamos as dimensões e as abordagens sob a ótica “interior”
do ser humano (interior individual e interior coletivo); do lado direito,
identificamos as dimensões e abordagens sob a ótica “exterior” do ser humano (exterior
individual e exterior coletivo);. Na parte superior do gráfico,
encontram-se as dimensões individuais, sob as óticas interior e exterior; e,
por último, na parte inferior, as dimensões coletivas, sob a ótica
interior e sob a ótica exterior.
Com isso, podemos compreender que o ser humano, em todas as suas
experiências, realiza-se e expressa-se em suas quatro dimensões, ainda que não
consigamos, devido o modo operativo de nosso sistema nervoso, abordá-las cognitivamente ao
mesmo tempo, importa estarmos conscientes da presença de cada uma delas, assim
como de todas ao mesmo tempo.
Essas dimensões são: (01) a dimensão individual interna, que
tem a ver com sentimento, com mente, com a compreensão interna, interpretativa,
hermenêutica do sujeito (representada, no gráfico, pelo quadrante superior
esquerdo); (02) a dimensão individual externa, visível, observável,
comportamental (representada no gráfico pelo quadrante superior direito); (03)
a dimensão coletiva subjetiva engloba os valores, a cultura e
a comunidade dentro da qual o portador da experiência está inserido
(representada, no gráfico, pelo quadrante inferior esquerdo); e, por último,
(04) a dimensão coletiva objetiva, sistêmica, constituindo uma rede
interobjetiva de relações observáveis (representada no gráfico, pelo quadrante
inferior direito).
Toda e qualquer experiência humana se realiza e se expressa simultaneamente
nessas quatro dimensões, ainda que, cognitivamente, só consigamos abordar
de modo distinto cada uma delas. Ainda que essas dimensões se dêem num todo em
nossa experiência, nós compreendemos a realidade da experiência em conformidade
com a ótica epistemológica que estivermos adotando: individual interna (subjetiva),
individual externa (comportamental), coletiva interna (ética, moral, cultura),
coletiva externa (ciência nas suas variadas possibilidades).
A dimensão individual interna é aquela onde o ser humano
vivencia uma experiência, dentro de si mesmo, na dimensão do eu;
dimensão que, na expressão de Wilber, garante o crescimento individual interno,
através das múltiplas fases de desenvolvimento, que vão do pré-pessoal, pelo
pessoal para o transpessoal[8].
Esse é o campo do pensar filosófico, da espiritualidade, da introspecção
psicológica, da criação artística, da percepção estética...
A dimensão coletiva interna é aquela onde o ser humano
vivencia sua experiência de comunidade, dos valores e sentimentos de viver e
conviver com o outro e com os outros, vivência da cultura e dos valores comuns,
que dirigem a vida. É a dimensão do nós comunitário,
onde se faz presente a formação e a vivência da ética e da moral. É o campo da
sensação, dos sentimentos e da vivência com o outro, do convívio, da ética, da
moral...
A dimensão individual externa expressa,
objetivamente, aquilo que se passa na nossa experiência individual, através das
manifestações do nosso corpo, dos nossos sistemas fisiológicos (nervoso,
circulatório, respiratório) e do nosso comportamento psicossocial. São
elementos que podem ser estudados objetivamente, via os meios de mensuração. É
o campo do comportamento objetivo individual, da fisiologia, da anatomia, da neurofisiologia,
das ciências comportamentais, como a psicologia comportamental...
A dimensão coletiva externa se dá nas relações
sistêmicas que constituem nossa vida, através das relações interobjetivas. As
múltiplas relações que atuam e reagem entre si, constituindo sistemas de
elementos e de variáveis que determinam dialeticamente nosso modo de ser e de viver.
É o campo do coletivo, que pode ser estudado objetivamente sob a ótica
do funcionamento dos sistemas. Esse campo é estudado pela sociologia, pela
história social, pela política, pelas abordagens sistêmicas em geral.
O campo do eu só pode ser percebido, estudado e
compreendido pela interpretação. O campo do nós só pode ser
verdadeiramente assimilado, estudado e compreendido pela vivência mútua da
cultura, com todos os seus valores; valores que só podem ser apreendidos
adequadamente por quem os vivencia. O campo do ele, por outro lado,
seja o individual ou o coletivo, pode e deve ser apreendido pelos sistemas de
mensuração e/ou demonstração objetivos. Segundo Wilber esses dois campos --- do ele individual
e do ele coletivo --- poderiam ser reunidos em um único campo --- o campo
do ele ---, pois que ambos estão compreendidos objetivamente,
como campo do outro, independente de cada um de nós.
Desse modo, uma experiência integral do ser humano se realiza em
suas quatro dimensões, que permitem (01) uma vivência individual da estética e
da espiritualidade, (02) assim como a experiência individual da ética, da moral e da cultura, ambas
assentadas, (03) sobre a materialidade externa da constituição bio-psicológica
de cada um, e (04) sobre dos sistemas sociais e históricos de relações com o
outro.
Dentro deste quadro de referência, toda e qualquer experiência humana
poderá ser abordada sob a ótica de cada um desses quatro quadrantes, ou
dimensões, à medida que, se elas se dão dessa forma, permitem sua abordagem
segundo as quatro referidas óticas epistemológicas.
Ou seja, qualquer atividade humana é vivida, simultaneamente, nas quatro
dimensões e, por isso poderá ser abordada, também, segundo os quatro
quadrantes. É exatamente devido a experiência dar-se (realizar-se) nas quatro
dimensões, que ela pode assim ser abordada. O que quer dizer que uma atividade
humana --- seja ela qual for --- se dará nas quatro dimensões e, deste modo,
deverá ser abordada.
Será abordada pela ótica do quadrante superior esquerdo, ótica interna
do sujeito que realiza e vivencia essa atividade. Poderá ainda ser abordada
pela ótica do quadrante inferior esquerdo --- ótica da convivência com os
outros e da cultura ---, o que permitirá vivenciar e desvendar os sentimentos
comunitários, resultantes do presente ou de um longo processo de heranças
socioculturais, através dos quais, esses sentimentos adquiriram um sentido ou
está adquirindo um sentido novo neste momento de convivência. Poderá ainda ser
abordada sob a ótica do comportamento individual, externa e objetivamenteobservável.
Por último, essa atividade poderá ser abordada como um fenômeno social, através
da observação, da contagem de frequências das vezes que se manifesta no todo da
sociedade, na qual está inserida, assim como das relações intersubjetivas, que
dão origem, sistemicamente, às suas características.
2. A ludicidade
como uma experiência interna do sujeito que a vivencia
Tomando esse referencial por base, quando definimos ludicidade como um
estado de consciência, estamos falando a partir do quadrante superior esquerdo,
ou seja, da vivência e percepção interna do sujeito. Uma atividade que poderá
ser plena exclusivamente para a pessoa como sujeito, só ela poderá vivenciar a
“plenitude da experiência”, através de alguma atividade; a “plenitude” é uma
experiência interna do sujeito. A ludicidade, nesta perspectiva, é interna.
Objetivamente, poderemos, a partir do quadrante superior direito,
descrever uma atividade como lúdica, seu algoritmo, sua configuração, suas
regras, suas práticas visíveis, devido ao fato de que muitas pessoas, tendo
vivido tais atividades, sentiram-se “plenas” consigo mesmas. Porém, importa
observar que para um determinado individuo essa atividade, que descrevo como
lúdica, poderá não sê-lo, em função de sua história pessoal de vida (quadrante
superior esquerdo, sua biografia pessoal), assim como em função do meio social,
no qual está inserido (quadrante inferior esquerdo, sua cultura) e em função de
sua assimilação interna dessa herança.
Deste modo, quando estamos definindo ludicidade como um estado de
consciência, onde se dá uma experiência em estado de plenitude, não estamos
falando, em si, das atividades objetivas que podem ser descritas sociológica e
culturalmente como atividade lúdica, como jogos ou coisa semelhante.
Estamos, sim, falando do estado interno do sujeito que vivencia a
experiência lúdica. Mesmo quando o sujeito está vivenciando essa experiência com
outros, a ludicidade é interna; a partilha e a convivência poderão
oferecer-lhe, e certamente oferecem, sensações do prazer da convivência, mas,
ainda assim, essa sensação é interna a cada um, ainda que o grupo possa harmonizar-se
numa sensação que se expressa de forma comum a todos; porém um grupo, como
grupo, propriamente não sente, mas soma e engloba um sentimento que
se torna comum; porém, em última instância, quem sente é o sujeito individual.
Certamente que vivenciar uma experiência em grupo é muito diferente de
praticá-la sozinho. O grupo tem a força e a energia do grupo; ele se movimenta,
se sustenta, estimula, puxa a alegria, mas somente cada indivíduo, nesse
conjunto vital e vitalizado, poderá viver essa sensação de alegria, partilhada
no grupo e, pois, de ludicidade. Isso é facilmente perceptível, quando ocorrem
partilhas a respeito da experiência vivida. A situação foi única, mas as
sensações e percepções são tão variadas quando são os indivíduos que vivenciaram
a experiência.
Deste modo, uma atividade descrita objetivamente, seja pela sua
estrutura, seja pelo seu comprometimento com uma determinada herança
sociocultural --- como o folclore, os brinquedos tradicionais ... ---, não
necessariamente será lúdica para o sujeito que a vivencia. Pelo hábito
linguístico ou sociocultural, poderemos descrevê-la como “lúdica”, mas, não
necessariamente ela propiciará a todos que a vivenciarem um estado de plenitude
de experiência, isto é, um estado lúdico. Vamos tomar, a título de exemplo, a
brincadeira de “pular corda”.
Para mim, ela propiciará um estado interno de inteireza, alegria,
prazer, enquanto estiver, no seio de um grupo, pulando corda. Dar-me-á
inteireza, alegria, prazer, praticando essa experiência sozinho e, ao mesmo
tempo, na interação com as outras pessoas, participando e partilhando da
felicidade do momento. Todavia, para outra pessoa, esta mesma atividade, poderá
trazer desprazer, seja devido nunca ter pulado corda e não estar interessada em
tentar aprender agora, seja devido ter tido uma experiência negativa com esse
brinquedo em sua história pessoal de vida, ou qualquer outro elemento que não
lhe permita vivenciar agora essa experiência com alegria,
prazer, integridade, portanto, de maneira lúdica.
Assim sendo, objetivamente --- dimensão
externa das possibilidades de condutas ---, a atividade pode ser descrita como
lúdica, porém, ela não necessariamente trará a mesma experiência de plenitude
para todos os participantes da experiência, ainda que o grupo seja um
condicionante fundamental para a participação do maior número de pessoas em uma
atividade que seja coletiva, como sinalizamos anteriormente. Ao contrário do
estado de bem-estar, de plenitude, que uma experiência traz para muitos, ela
poderá sinalizar para uma pessoa --- ou para várias pessoas de um grupo --- uma
dor que estava guardada internamente. Então, certamente que a experiência,
ainda que, objetivamente, seja cognominada de “lúdica”, para essa pessoa ou
para essas pessoas, não será lúdica.
Nesse caso, a dor interna que a atividade, objetivamente definida como
lúdica, elicia, não nos permite defini-la como lúdica; fato que nos conduz a
entender que, em si mesma, uma experiência não é lúdica nem não lúdica; é simplesmente
uma experiência. A ludicidade, então, é um estado interno de quem vivencia a
experiência.
As atividades que objetivamente são tomadas como lúdicas e que, por
alguma razão interna da pessoa, possam fazer emergir alguma dor, limite ou dificuldade,
elas possibilitam ao sujeito, caso seja capaz de “olhar para elas”, uma oportunidade
da cura dessa dor, dificuldade ou limite interno. Por cura, aqui, estamos entendendo
uma oportunidade de fazer contato com um aspecto doloroso de sua vida, mas que,
também e ao mesmo tempo, aponta para um aspecto saudável de si mesmo, da
alegria, do prazer, da convivência, da não-rigidez... Por vezes, são dores
vividas no passado, porém nunca compreendidas ou elaboradas emocional e
cognitivamente.
Em síntese, ao afirmar que a atividade lúdica traz uma oportunidade de
experiência plena, importa estar atento para o “olhar” a partir do qual estamos
afirmando isso: a dimensão do eu, a dimensão interna.
E é em função dessa visão que se está defendo a ideia de que a vivência
que pode ser denominada de lúdica é aquela que propicia ao sujeito uma
experiência de plenitude, devido ela ir para além dos limites do eu de cada um,
constituído em sua história de vida.
A descritiva comportamental individual e/ou coletiva, assim como os
valores comunitários, que sustentam uma compreensão dessa experiência, usualmente
compõem o “entorno” dessa sensação de experiência plena, que podem ser tratadas
por outros âmbitos do conhecimento, como vimos acima; contudo, esses
tratamentos são externos à experiência interna.
Compreendemos, pois, que a ludicidade é um estado interno ao sujeito.
Algumas atividades, que são externas ao sujeito e usualmente propiciam entretenimento,
amistosidade, criatividade, expressão livre... podem ser adjetivadas de
“lúdicas”, como se fossem características dessas atividades, mas cientes de que
ludicidade é uma característica interna ao sujeito que vivencia a experiência;
ciente, pois, que ludicidade não está impressa no mundo externo ao sujeito. Ela
não é objetiva, mas subjetiva, por isso, em relação aos quadrantes do
conhecimento, formulados por Ken Wilber, a experiência lúdica se enquadra no
primeiro quadrante superior esquerdo, o quadrante que representa a experiência
individual interna.
[1]
Ao caminhar pela leitura do
presente texto, o leitor deverá ter presente que ele é parte de artigo publicado pela primeira vez em Educação
e Ludicidade (Ensaios 02) --- Lucicidade: o que é isso?, sob a
organização da Profa. Bernadete Porto --- GEPEL/FACED/UFBA, 2002, páginas
22 a 60.
[2]
Ground interno, aqui, é tomado no
sentido de base, suporte, capacidade de sustentar a própria experiência a
partir de uma qualidade interior fluída e não a partir de recursos externos,
aprendidos como lições que devem ser cumpridas.
[3]
Ken Wilber é um biólogo
norte-americano que, nas duas décadas finais do século XX, investiu largamente
na área do autodesenvolvimento, transitando da Biologia para a Filosofia, tendo
tornado públicas suas compreensões a respeito do ser humano. No caso, aqui nos
interessou e nos interessa sua classificação das áreas de conhecimento, onde a
ludicidade
[4]
Ken Wilber, Uma breve
História do Universo, Rio de Janeiro, Ed. Nova Era, 2001.
[5]
Ken Wilber, O olho do
espírito, São Paulo, Ed. Cultrix, 2001.
[6]
Ken Wilber, O olho do
espírito, São Paulo, Ed. Cultrix, 2001.
[7] Ken Wilber, Uma breve história
do universo: de Buda a Freud, religião e psicologia unidas pela primeira
vez, Rio de Janeiro, Record Nova Era, 2001, p. 93.
[8] Importa sinalizar que Ken Wilber
compreende que o ser humano, em sua trajetória de crescimento e
desenvolvimento, passa pelas fases “pré-pessoal”, do 0 (zero) aos sete anos de
idade; “pessoal”, dos 7 anos à vida
adulta e profissional; e “transpessoal”, fase construída por escolha e
investimento de cada ser humano num caminho de autocuidado, autoconhecimento e de autodesenvolvimento.