quarta-feira, 9 de setembro de 2020

 

03 COMPREENDENDO O CONCEITO DE LUDICIDADE





OBSERVAÇÃO - O presente texto representa parte do artigo “Ludicidade e formação do educador” publicado na Revista Entreideias, FACED/UFBA, Salvador, v. 3, n. 2, p. 13-23, jul./dez. 2014. A parte relativa à formação do educador foi supressa para esta publicação, permanecendo exclusivamanete a conceituação de Ludicidade.

 


Ludicidade não é um termo dicionarizado. Vagarosamente, ele está sendo inventado, à medida que seguimos tendo uma compreensão mais adequada do seu significado, tanto em conotação --- seu significado ---, quanto em extensão --- o conjunto de experiências abrangidas por ele.

Usualmente, quando se fala em ludicidade, se compreende, no senso comum cotidiano, que se está fazendo referência às denominadas “atividades lúdicas”, tais como brincadeiras sejam elas infantis ou adultas --- por vezes, até de mau-gosto ---, entretenimentos,  atividades de lazer, excursões, viagens de férias, viagens para grupos...

Todas essas atividades, denominadas de lúdicas, poderão ser “não lúdicas” a depender dos sentimentos que se façam presentes em quem está participando delas, numa determinada circunstância. Por exemplo, quando ocorre que uma criança que, por alguma razão biográfica (usualmente de caráter psicológico), não gosta de pular corda, essa atividade “brincar de pular corda”, para ela, além de incômoda, será “chata” sem nenhuma ludicidade. A alma da criança não estará presente no que estará fazendo, à medida que não lhe é lúdico praticar essa atividade que, usualmente, é denominada de lúdica, mas que, para ela, é incômoda e, por isso, sem alegria. O mesmo pode ocorrer com pessoas adultas e idosas.

Será que podemos conhecer alguma coisa mais incômoda do que ser obrigado a praticar uma atividade, que todos dizem que ser lúdica, mas, para nós, não o é?

Tendo em vista compreender o exposto, relato que, em uma das disciplinas que ensinei, nos finais dos anos 1990, no Programa de Pós-Graduação em Educação, FACED/UFBA, num determinado dia, em sala de aula, praticamos a brincadeira --- certamente conhecida de muitos, senão de todos --- denominada de “cabra cega”, tendo como objetivo retomar, vivenciar e reconhecer essa experiência sociocultural da qual a maioria de todos nós participamos, quando crianças e, a seguir, dialogar sobre o seu significado existencial, sociológico, psicológico e didático, como também, e de modo especial, compreender o que ocorre internamente com quem vivencia essa experiência.

A metodologia teórico-prática utilizada nas aulas para que os estudantes, que atuariam, no futuro, com outras pessoas, pudessem compreender por experiência pessoal o que ocorre internamente com alguém que pratica essa determinada atividade. O educador é um orientador, mas também um acompanhante do aprendiz, por isso, não basta ter estudado em livros o que ocorre com o outro enquanto vivencia uma experiência; daí a necessidade de aprender experimentando, a fim de que possa, a partir da experiência pessoal, compreender o outro quando com ele estiver atuando, seja em sala de aula ou em outra circunstância.

Só para lembrar, a configuração da brincadeira da “cabra cega” se dá da seguinte forma: as crianças formam uma roda, seja em uma sala de aulas ou em um pátio, e uma delas será a cabra cega. Para tanto, terá os olhos vendados com um lenço e, a seguir, sem a ajuda de ninguém, tendo em vista “pegar” um dos participantes, que, quando apanhado, será a próxima cabra cega.

 Os participantes, enquanto a situação ocorre, torcem, falam, gritam, ajudam, protegem, provocam, riem, fogem... A cabra cega tenta pegar um dos participantes e, então, a movimentação de aproximação, distanciamento, toques... se sucedem até que alguém da roda seja apanhado, o que lhe garantirá o lugar de “cabra cega”.

Uma estudante --- adulta, pois que trabalhava na Pós-Graduação ---, na circunstância descrita, permaneceu reticente no decorrer da brincadeira; não deu nenhuma chance à possibilidade de ser apanhada pela cabra cega, colocando-se fora da roda, defendendo-se da possibilidade de vir a ser a próxima “cabra cega”, e, por isso, a ter os olhos vendados.

No momento da partilha, envolvendo compreensões, experiências pessoais, sentimentos..., essa estudante, ao partilhar seu modo reticente nessa atividade, relatou o seguinte: quando criança, brincando de “cabra cega”, com os olhos vendados, seus colegas de roda permitiram que ela --- cegamente --- caminhasse a esmo e, então, enquanto todos riam, falavam, provocavam, deixaram que ela trombasse com uma cerca de arame farpado (brincavam num espaço aberto de rua), machucou-se e todos continuavam a rir.  “Brincar de cabra cega (e atividades semelhantes) nunca mais” foi a decisão que tomou naquele momento.

Essa atividade recebe a qualificação de “lúdica” --- desde que, supostamente, “brincar de cabra cega é lúdico” --- mas, para essa menina, a atividade não fora nada lúdica, frente à sua incômoda vivência, ocorrida em outro momento de sua vida; a memória da experiência não era lúdica, mas sim sofrida. De fato, em si mesma, uma atividade não é lúdica nem “não-lúdica”. Pode ser, ou não, a depender do estado de ânimo de quem está participando, assim como da circunstância em que participa da atividade.

Por si, brincar de cabra cega, simplesmente, é uma atividade, que pode ser descrita em seus detalhes; mas a sua qualidade dependerá da vivência de quem participa da atividade, em uma determinada circunstância.

A experiência relatada acima se multiplica aos milhares na vida de cada um de nós e na vida das pessoas em geral. Qualificamos a realidade que nos cerca e que vivenciamos com as determinações das experiências que tivemos no transcorrer de nossas vidas. As experiências nos marcam. Existe um ditado popular que traduz bem essa compreensão, dizendo que: “Gato escaldado tem medo de águia fria”[1].

Nossos estados emocionais e as circunstâncias onde vivenciamos uma determinada experiência possibilitam sua qualificação como positiva ou negativa. No caso da estudante, acima relatado, era impossível qualificar a brincadeira da cabra cega como “lúdica”, em decorrência da memória relativa a episódios existenciais passados.

Na vida adulta, em variadas circunstâncias, após tecer uma observação, supostamente jocosa, que incomoda outra pessoa, usualmente dizemos: “Eu só estava brincado”. Cabe perguntar: “que brincadeira, hein?”

O mesmo, por vezes, poderá ocorrer com atividades sócio-culturais coletivas indicadas como lúdicas, mas que, para determinadas pessoas e em determinadas circunstâncias, elas não têm nada de lúdicas.

Os leitores deste texto poderão produzir uma lista infindável dessas circunstâncias, onde atividades são qualificadas como “lúdicas” e efetivamente não tem “nada de lúdicas” para quem as vivencia.

Dessa forma, não existem atividades que, por si, sejam lúdicas. Simplesmente existem atividades. E elas serão qualificadas como lúdicas, ou não, a depender do sujeito que as vivencia e da circunstância onde isso ocorre.

Contudo, então, vale perguntar: livros didáticos que ensinam praticar atividades lúdicas junto aos educandos, livros que abordam historicamente as atividades denominadas de lúdicas, assim como os livros que abordam sociologicamente essas atividades, não têm qualquer razão de ser?

Ocorre que essas abordagens tomam essas atividades sempre do ponto de vista objetivo e externo ao sujeito que as pratica e as vivencia e, usualmente, também sem ter presentes as circunstâncias onde essas experiências são vivenciadas. Estuda-se abstratamente o que se vê, não o que se sente numa determinada circunstância.

Então, existem livros didáticos que ensinam como praticar atividades lúdicas junto aos educandos; existem os livros que tratam da história das atividades lúdicas, abordando como os povos, culturas e grupos humanos praticaram atividades que foram consideradas como lúdicas; e, por último, existem os livros de sociologia do brinquedo ou das atividades lúdicas que abordam essas atividades no seio das variáveis sociológicas, permitindo compreendê-las dentro desse contexto sociocultural. Nenhuma dessas abordagens toma como objeto do seu estudo a experiência interna do sujeito que pratica essas atividades. As abordagens, acima referidas, tomam como seu objeto de estudo a fenomenologia externa ao sujeito, fator que não possibilita estudar e compreender o que se passa na intimidade de quem vivencia a experiência.

Durante os anos que trabalhei com atividades lúdicas na Pós-graduação em Educação, FACED/UFBA, entre os anos de 1992 e 2006, em meus estudos, fui compreendendo que a ludicidade é um estado interno ao sujeito, ainda que as atividades, em si, sejam expressas e observáveis de modo externo ao sujeito que as pratica e vivencia. A experiência lúdica (= ludicidade), que é uma experiência interna ao sujeito, só pode ser percebida e expressa pelo sujeito que a vivencia[2].

Ken Wilber, em seus estudos sobre a consciência diz que nossas compreensões em torno da vida e do mundo se dão por quatro dimensões: a dimensão subjetiva individual, que só pode ser percebida e expressa pelo próprio sujeito; a dimensão subjetiva coletiva, que determina os modos de ser de uma comunidade ou sociedade, tal como ocorre nos pactos sociais e éticos; a dimensão objetiva individual, que é composta pelos comportamentos individuais que podem ser observados e descritos a partir de um indivíduo, como ocorre nos estudos da psicologia; e, por último, a dimensão objetiva coletiva, cuja fenomenologia pode ser observada, descrita e compreendida pelas ciências humanas.

Nesse contexto, a ludicidade, como um estado interno do sujeito, só pode ser vivenciada e, por isso mesmo, percebida e relatada pelo próprio sujeito. Ela pertence à primeira dimensão sinalizada por Wilber[3], a dimensão subjetiva individual. Então, nesse contexto, a ludicidade configura-se como um estado interno ao sujeito; contudo, as atividades denominadas como lúdicas pertencem ao domínio externo ao sujeito e, portanto, à dimensão objetiva coletiva, segundo a classificação desse autor. Ludicidade e atividades lúdicas são, pois, fenômenos diversos e, dessa forma necessitam ser compreendidos.

Esse entendimento epistemológico ajuda-nos a não confundir ludicidade com atividades lúdicas, distinguindo-as, ainda que sem separá-las. Fato que também nos permite não desqualificar uma dessa abordagens, qualificando excessivamente a outra. Simplesmente são fenômenos epistemologicamente distintos.

Compreendida dessa forma, a ludicidade pode se fazer presente em todas as fases da vida. Dentro do útero materno, podemos viver os “estados oceânicos”, sinalizados por Freud. Em nossa infância, quantas experiências lúdicas não foram vivenciadas por cada um de nós? Nessa fase de vida, nossos olhos brilharam por tão pequenas coisas --- um boneco, uma boneca, um carrinho, um iô-iô, uma corda para pular, um velocípede, uma bola, um pirulito, um picolé, por um colo de pai, por um colo de mãe, pelas histórias que nossas avós contavam... e por aí se vai; pequenas coisas que nos deram imensos prazeres e alegrias. Em nossa adolescência, os amigos, as amigas, as conversas, os passeios, a roupa da moda, a posse de um objeto desejado, a posse de um lugar entre os pares em função de uma habilidade que havíamos desenvolvido seja no esporte, na música, nos conhecimentos, uma viagem desejada... Na juventude, quantos sonhos e quantas alegrias nas pequenas conquistas rumo à vida adulta, em direção ao trabalho profissional, à manutenção e a sobrevivência, ao amor, ao serviço à vida. Na maturidade, tantos são os possíveis momentos lúdicos, no trabalho, nas relações amorosas, nas ciências, nos estudos, nas conversas, nas conferências, nos momentos de entretenimento e lazer... Com a idade mais avançada, o estado lúdico pode advir das diversas realizações naquilo que se gosta de fazer --- trabalho, pintura, música, poesia, escrever, conversar, recordar, estar com filhos, netos, netas, viajar...

Então, ludicidade é um estado interno, que pode advir das mais simples às mais complexas atividades e experiências humanas. Não necessariamente a ludicidade se dá em algo externo ao sujeito. Pode advir de qualquer atividade que faça os olhos brilharem.

Ela não é igual para todos. Experiências que podem gerar o estado lúdico para um não necessariamente gera estado lúdico para outro, à medida que ludicidade não pode ser medida de fora, mas só pode ser vivenciada e expressa por cada sujeito, a partir daquilo que lhe toca internamente, em determinada circunstância.

Algumas atividades poderão parecer “chatas” para um, mas “lúdicas” para outros. Como isso pode ser? Exatamente devido a ludicidade ser um estado interno ao sujeito e as atividades serem externas.

David Boadella, cidadão inglês, criador da Biossíntese, área psicoterapêutica corporal, estando no Brasil, ouviu de um músico a afirmação --- “A música é minha psicoterapia” ---, ao que retrucou, quase em forma de trocadilho, --- “E, a psicoterapia é minha música”. O que é alegre, prazeroso, pleno para um, não necessariamente o será para outro.

Para finalizar, no contexto das filosofias orientais, se diz que o estado de êxtase --- estado de plenitude interna --- é um “estado búdico”. Parafraseando, poderíamos dizer que o “estado lúdico é um estado búdico”.  Um estado interno de bem-estar, de alegria, de plenitude, que pode e deve ocorrer em qualquer momento ou estágio da vida de cada ser humano.

Daí, as consequências: certamente que muitas de nossas práticas existenciais e sociais que afirmamos, pelo senso comum, serem lúdicas não o são, simplesmente devido não gerarem um estado interno de bem-estar, alegria, prazer e plenitude. E, ao contrário, muitas outras atividades, que desconsideramos como significativas, geram em tantas outras pessoas estados internos de plenitude. A ludicidade não pode ser julgada de fora, mas de dentro de si mesmo. Em síntese, ludicidade tem a ver com experiência interna pessoal, ainda que sendo vivenciada em uma situação coletiva. Todos podem estar felizes, porém, cada um a seu jeito.

 

 

 



[1] Freud nos lembra que uma reação emocional desproporcional à uma circunstância do presente, não é do presente, mas do passado. E os neurologistas, após a possibilidade de estudar o sistema nervoso enquanto estamos vivos, descobriram que as reações intempestivas de medo têm sua fonte de atuação nas “amígdalas cerebrais”, onde se encontram registradas as memórias do medo. Sobre isso, ver Joseph LeDoux, O cérebro emocional: os misteriosos alicerces da vida emocional, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1998, cito a 2ª edição.

[2] Ver Bernadete de Souza Porto (org), Educação e Ludicidade – Ensaios 02, GEPEL/FACED/UFBA< 2002, pág. 22-60.

[3] Ver Ken Wilber, Uma breve história do universo: de Buda a Freud, Nova Era, Rio de Janeiro, 2011, páginas 91-106.






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